Artigo- O tempo esperou por mim
Em meio à avalanche de um diagnóstico de câncer, o que menos parece existir é o tempo. As decisões são rápidas, os protocolos urgentes, os riscos concretos. A vida se divide entre antes e depois de um laudo — e pensar em qualquer coisa além da sobrevivência parece um luxo inatingível.
Foi
nesse cenário que, ainda sem saber se um dia desejaria ser mãe, ouvi pela
primeira vez a palavra criopreservação.
Não
era sobre maternidade naquele momento. Era sobre continuidade. Sobre saber que,
apesar da tempestade, existia um futuro em que minhas escolhas poderiam
florescer.
Era
sobre isso: saber que a vida não acabava ali — e que, de algum modo, o tempo
poderia me esperar.
O que é criopreservação?
Criopreservar
óvulos, embriões ou tecido ovariano significa submetê-los a um congelamento em
nitrogênio líquido, com a possibilidade de uso futuro. O procedimento é
altamente indicado para mulheres em tratamento oncológico, sobretudo antes do
início da quimioterapia ou radioterapia, já que essas terapias podem
comprometer de forma temporária ou definitiva a fertilidade.
Sociedades
médicas como a ASCO (American Society of Clinical Oncology) e a FEBRASGO
(Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia) recomendam
a criopreservação como parte do protocolo de tratamento.
Quando
o tempo vira direito
Do
ponto de vista jurídico, a criopreservação envolve muito mais do que questões
médicas ou familiares. Trata-se de garantir o direito reprodutivo de pacientes
em tratamento — e, em muitos casos, de proteger sua dignidade, sua autonomia e
seu projeto de vida.
Infelizmente,
esse direito ainda não é amplamente informado no momento do diagnóstico. Muitas
mulheres só descobrem que poderiam ter preservado sua fertilidade após o início
da quimioterapia — quando já é tarde demais.
O
tema tem avançado no Judiciário. Em decisão unânime, a Terceira Turma do
Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu que planos de saúde devem custear
o procedimento de criopreservação de óvulos de pacientes com câncer, como
medida preventiva diante do risco de infertilidade gerado pela quimioterapia
(REsp 1.962.984).
Segundo
a relatora, Ministra Nancy Andrighi, ainda que a reprodução assistida não seja
de cobertura obrigatória pelas operadoras, a criopreservação, nesse caso, não
se enquadra como tratamento de fertilidade, mas como parte da prevenção dos
efeitos adversos da quimioterapia, que já é coberta contratualmente.
A
ministra destacou que, à luz do princípio primum non nocere (primeiro, não
causar dano), cabe ao plano de saúde prevenir efeitos previsíveis e evitáveis
do tratamento médico.A decisão ainda firmou que o custeio da criopreservação
deve se estender até a alta oncológica da paciente, limitando a cobertura a
esse período, de forma proporcional e razoável.
Esse
entendimento reforça o caráter terapêutico do procedimento e abre precedentes
importantes para a construção de uma jurisprudência protetiva, voltada à saúde
integral da mulher.
A
esperança como política pública
Quando
pensamos em políticas de saúde voltadas ao câncer, falamos em cura, sobrevida e
bem-estar. Mas e o direito ao futuro?
Preservar
a fertilidade de uma paciente jovem não é um luxo. É um ato de reconhecimento —
de que há vida após o câncer. É permitir que aquela mulher não precise
renunciar a todos os seus sonhos em nome da luta. É, de certa forma, dizer a
ela: “Não tenha pressa. Você vai voltar. E o tempo vai te esperar.”
Eu
consegui fazer minha criopreservação porque tive acesso à informação e aos
recursos. Mas e quem não tem? E as milhares de meninas e mulheres que não foram
sequer informadas de que essa possibilidade existia?
Por
isso escrevo. Porque, se vivi isso na pele, carrego a responsabilidade de
transformar esse relato em alerta, em dado, em voz. Porque criopreservar não é
apenas congelar óvulos — é dar um passo firme em direção à vida. E porque, sim,
o tempo esperou por mim. E eu quero que ele espere por muitas outras também.
Melissa Telles Barufi
Advogada,
especialista em Direito de Filiação. coordenadora da Obra Direito de Filiação:
Uma ponte para o futuro
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